Desmaterializando a obra de arte do fim do milênio Faço um quadro com moléculas de hidrogênio Fios de pentelho de um velho armênio Cuspe de mosca, pão dormido, asa de barata torta
Meu conceito parece, à primeira vista, Um barrococó figurativo neo-expressionista Com pitadas de arte nouveau pós-surrealista calcado da revalorização da natureza morta
Minha mãe certa vez disse-me um dia, Vendo minha obra exposta na galeria, "Meu filho, isso é mais estranho que o cu da jia E muito mais feio que um hipopótamo insone
"Pra entender um trabalho tão moderno É preciso ler o segundo caderno, Calcular o produto bruto interno, Multiplicar pelo valor das contas de água, luz e telefone, Rodopiando na fúria do ciclone, Reinvento o céu e o inferno
Minha mãe não entendeu o subtexto Da arte desmaterializada no presente contexto Reciclando o lixo lá do cesto Chego a um resultado estético bacana
Com a graça de Deus e Basquiat Nova York, me espere que eu vou já Picharei com dendê de vatapá Uma psicodélica baiana
Misturarei anáguas de viúva Com tampinhas de pepsi e fanta uva Um penico com água da última chuva, Ampolas de injeção de penicilina
Desmaterializando a matéria Com a arte pulsando na artéria Boto fogo no gelo da Sibéria Faço até cair neve em Teresina Com o clarão do raio da silibrina Desintegro o poder da bactéria
Com o clarão do raio da silibrina Desintegro o poder da bactéria
Não é sem algum pudor que falo da nossa casa. Escrínio da vida, como dizia Le Corbusier, lá se juntam afectos, longos silêncios, perguntas. Lavada a sol a norte, lavada a sol a sul, dum lado há muitas árvores. Do outro, as árvores entram-lhe pelas varandas. E o espelho do mar também, que é como eu gosto de chamar ao céu. Com o crescer das crias, acrescentamos-lhe um andar. E um terraço cheio de nada. Sem que nunca tivesse sido uma casa atulhada, ficou mais despojada ainda. E com espaços vazios e disponíveis e brancos, à espera da cor que as pessoas trazem. Quando aos fins de tarde me sento a olhar, pergunto-me muitas vezes se as obras por concluir não são uma forma de eternizar a construção, adiar a morte. E enquanto não tenho respostas, os Outonos sucedem-se, o linho das camas mais puído desenha novas pregas, o rio engrossa. E o vento há-de passar.
Carlos Nogueira .......... (uma partilha de helena sousa)